terça-feira, 12 de julho de 2016

O Encontro com o Pequeno Príncipe: A Lição sobre a Solidão do deserto, o Mistério, e sobre carneiros em caixas...




Do Capítulo 2...

"Vivi portanto só, sem alguém com quem pudesse realmente conversar, até o dia,
cerca de seis anos atrás, em que tive uma pane no deserto do Saara. Alguma coisa se quebrara no motor. E como não tinha comigo mecânico ou passageiro, preparei-me para empreender sozinho o difícil conserto. Era, para mim, questão de vida ou de morte."
Com este trecho acima, que abre o segundo capítulo, Antoine de Saint-Exuspéry expõe a sua difícil condição existencial, tanto em termos subjetivos (a tristeza interior de não ter alguém para conversar), como os objetivos, nos problemas do avião que causaram sua queda no deserto. Então, ele se considerava uma pessoa só e sem um alguém sequer que fosse capaz de entender sua alma, justamente porque ainda não tinha encontrado aqueles capazes de ver além das aparências, conforme vimos na Lição anterior....
E além disso, se nós fizéssemos aqui um esforço de abstração, algo bastante condizente com a linguagem eminentemente simbólica do texto, poderíamos enxergar nas palavras do autor uma clara metáfora da sua condição humana " Alguma coisa quebrara no motor" poderia muito bem ser traduzido como " alguma coisa quebrara no meu interior". E o trecho e que afirma estar sem mecânico ou passageiros para ajudá-lo, mostra como a tarefa que tinha diante de si era um empreendimento individual, o "conserto interior" teria que ser feito sem auxílio externo algum....
E o cenário em que tudo isso vai se desenrolar não podia ser mais perfeito em termos de simbolismo, afinal é um deserto!
A imagem do deserto interior é universalmente conhecida poetas, artistas e místicos de todas as eras. É aquele lugar onde a beleza natural se mistura de forma dramática com o risco à sobrevivência pessoal. Traduz o sentimento das grandes almas, que também são muitas vezes pessoas solitárias e tristes. É comum a estas pessoas confundirem sua vastidão interior com um deserto seco e solitário, apesar de saber que nelas habita também um calor intenso, uma luz brilhante, que quando cede lugar a noite da alma, deixa tudo absolutamente frio e escuro, tal qual faz um deserto...
Bem, é apenas quando nos encontramos em um lugar especial como este, onde o paradoxo de luz e trevas interior se faz destacado, é que talvez podemos nos encontrar numa situação limite que terá o poder de transformar toda nossa existência até então....E para o piloto Antoine, aquilo estava prestes a ocorrer através da pequena figura de cabelos dourados.... Aliás, o autor também enfatiza este caráter extraordinário da sua situação naquele lugar: " Era pra mim uma questão de vida ou morte".
Ou seja, é como se ali, naquela fase melancólica de sua vida e por causa daquele perigo existencial que corria, o autor se achasse na exata posição de se autotransformar e renascer para Vida: Ou encontrava uma nova forma de voltar a enxergar sua existência e relacionamentos, ou morreria em sua solidão...
Precisava redefinir seu lugar no mundo, precisava de uma experiência que sacudisse suas noções de realidade e o seu senso critico, precisava encontrar um outro alguém (ou talvez uma projeção de si mesmo?) que o mostrasse que a vida podia sim continuara ser vista com encanto, afeto e magia.... Numa palavra, Antoine precisava se abrir ao desconhecido, ao Mistério, atitude esta que só é possível àqueles que possuem uma certa vastidão interior....
E assim de fato ocorreu em seguida, quando, em suas palavras, surge como que do nada aquela figura extraordinária para despertá-lo (não podia ser mais pertinente a aparição do nosso príncipe, surge justamente para ""despertar"" o piloto que dormia para sua vida, e atingi-lo como "um raio"...)
E foi assim que ele descreveu o primeiro encontro:
Na primeira noite adormeci pois sobre a areia, a milhas e milhas de qualquer terra habitada. Estava mais isolado que o náufrago numa tábua, perdido no meio do mar.Imaginem então a minha surpresa, quando, ao despertar do dia, uma vozinha
estranha me acordou. Dizia:
— Por favor ... desenha-me um carneiro
— o que?!
— Desenha-me um carneiro ...
Pus-me de pé, como atingido por um raio. Esfreguei os olhos. Olhei bem. E vi um
pedacinho de gente inteiramente extraordinário, que me considerava com gravidade...."
E em um trecho seguinte, o autor pronuncia uma das frases que considero das mais marcantes do livro:
"Quando o mistério é impressionante demais, a gente não ousa desobedecer..."
Esta frase resume com perfeição o modo com que devemos nos abrir às maiores experiencia da vida, e também já demonstrava que sua alma estava pronta para ser tocada por aquela experiencia incrível pois voltou a se abrir ao inexplicável.
Em seguida, ante a insistência do pequeno príncipe para que fizesse o desenho do carneiro, o autor, meio contrariado, desafia o menininho mostrando o desenho da jibóia engolindo o elefante para ver se ele o aceitava no lugar do carneiro, e se surpreende ao verificar que de pronto o principezinho reconhece a figura que ninguém antes reconheceu, e em seguida protesta, como vemos no trecho abaixo:
"Como jamais houvesse desenhado um carneiro, refiz para ele um dos dois únicos desenhos que sabia. O da jibóia fechada. E fiquei estupefato de ouvir o garoto replicar:
— Não! Não! Eu não quero um elefante numa jibóia. A jibóia é perigosa e o
elefante toma muito espaço. Tudo é pequeno onde eu moro. Preciso é de um carneiro. Desenha-me um carneiro...."
E seguem-se as tentativas fracassadas de se desenhar um carneiro, pois nenhuma agrada ao príncipe, até que num acesso de ousadia, Antoine o desenha dentro de uma caixa, tal qual fizera nos seus desenhos infantis escondendo o elefante, e se surpreende novamente ao verificar que desta vez o pequeno príncipe ficou satisfeito: " Então se iluminou a face do meu pequeno juiz..."
Ora, já pela segunda vez seguida, o nosso pequeno herói mostra ao piloto que possui a sua famosa chave secreta, a capacidade de enxergar por de trás das aparências, ver o significado por trás das coisas, usar a imaginação para penetrar a essência.....
Além disso, ao também conseguir ver um carneiro escondido numa caixa, o principezinho nos ensina a ver as infinitas possibilidades que estão escondidas por de trás de algo aparente sem sentido, ou contraditório....Essa mensagem da essência permeia toda a obra, como bem o sabem seus fãs...
Então, se esse pequeno ser possuía de forma incontestável a sensibilidade para perceber estas coisas que adulto nenhum percebia e das quais o piloto jamais conseguiu conversar com mais ninguém, (conforme vimos na lição 1), então, ele estava de fato diante de alguém que poderia lhe tocar o âmago, penetrar em seu coração, alguém com quem poderia dividir aquelas coisas mais preciosas das quais as "pessoas grandes nada sabem"...
Estava ele então diante de uma pessoa única, especial , alguém com quem poderia enfim criar Laços, cativar e ser por ele cativado....Um Amigo...
Antes de finalizar a segunda lição, não poderíamos deixar de notar neste segundo capítulo a insistência com que o pequeno príncipe descreve seu planeta de origem como um lugar "pequeno", adequado somente para pessoas e coisas pequenas...
Essa enfase que ele faz a qualidade do pequeno não deve passar em branco também. O lugar pequeno implica que está tudo por perto. É como se quisesse nos mostrar, ainda que de forma muito sutil, que aquilo que importa de verdade pode e deve estar muito perto, aproximado, a um sussurro ou dois de distância... Afinal, nada do que nos é caro pode estar muito longe de nosso coração, que é esse nosso pequeno lugar que guarda tudo que realmente importa....
Essa importância da pequenez retorna ainda outras vezes no texto, e por isso deixaremos para comentar mais sobre isso nas próximas lições...
Na próxima, veremos os dois personagens se conhecendo um pouco mais, e a primeira crítica delicada do príncipe ao modo como estabelecemos nossos relacionamentos...
Então não deixe de acompanhar nossas postagens!
Até breve! 
~Daniel Antoine A.J.~

*** Postagem original publicada na página: https://www.facebook.com/Ensinamentos.do.Pequeno.Principe/?fref=ts